Monday, March 05, 2007

O outono primaveril






Uma voz dentro de si gritava, dizia algo incoerente, porem algo importante, vital, mas sua mente não conseguia escutar o que aquela consciência estranha lhe dizia. Então, em meio às vozes inexistentes, incessantes, caiu uma escuridão, um período de loucura, como uma sequeira por excesso de luz. Apenas seus nervos sabiam de algo, mas não queria avisar o cérebro agora, com medo da irracionalidade desenfreada de um centro racional.

Houve um tempo, que pareceu longo, de devaneio. Não havia tempo nem espaço; o agora era apenas um borrão. Sua mente vagueava, pois ainda estava chocada demais para voltar à realidade; mas, com o passar do tempo, o corpo foi obrigado a chamá-la de volta, para tomar conta da casa que agora ruía.

A consciência voltava devagar, ainda dopada pela quantidade de informações que não conseguia absolver, e também pelas que não queria, inconscientemente, conhecer. O Ser Consciente, porem, passava, lentamente, a prevalecer naquela que devia ser sua morada, acordando de um sono sem descanso.

Logo, o que chama-se de consciência concretizou-se, e um homem viu-se ao chão. Seu nome era Gabriel, e essa foi a primeira coisa que lembrou. A seguir olhou à sua volta. Estava escuro, pois era noite, e ele percebeu que estava ao chão, encostado a uma arvore antiga, com uma massa estranha à sua frente, disforme e volumosa.

Gabriel rapidamente tomou consciência de que esteve inconsciente, e tentava juntar as peças do que havia, e o que estava ocorrendo. Pensou em se levantar, mas se encontrava muito cansado ainda, respirando devagar, dificilmente, e parecia que aquela massa a sua frente, com uma parte caída pesadamente sobre o seu colo, não deixaria-o levantar-se, assim, continuou onde estava.

Ao forçar, inconscientemente, seu cérebro a trabalhar mais, devido à curiosidade que demonstrava pelo que poderia estar acontecendo, sua consciência foi forçada, mesmo relutantemente, a liberar uma informação perigosa: a memória.

Gabriel se lembrou quase que instantaneamente. Era natal, natal alegre, numa cidade litorânea comum, apenas uma cidade comum, comum, e numa noite de natal. Ele havia saído em plena noite, pois não era tão noite assim, e precisava urgentemente ir dar um “feliz natal” à uma querida amiga, que passaria a noite sozinha, pois os pais estavam já falecidos e o resto da familia longe.

No meio do caminho para a casa dela, que na verdade era bastante perto, passou por um parquezinho, bem pequeno, com apenas alguns bancos e arvores, com a grama um pouco descuidada, mas ainda verde. Estava um pouco escuro, mas sabia que era um local calmo e não era perigoso, por isso entrou no parque para colher algumas flores silvestres como um pequeno presente de natal. Não era um presente, pois não estava embalado e não havia sido comprado, mas era uma lembrança, e por isso valia mais, já que lembrava um sentimento.

Ao sair do parque com suas flores, uma nevoa quase instantaneamente caio. Era a memória falhando. Só lembrava de um facho de luz as suas costas, e ao se virar sentir um impacto, um forte impacto, mas sem dor, como uma sutil bofetada.

Voltou ao presente. Demorou-se pouco analisando a situação. Era obvio que havia sido atropelado, e o que havia a sua frente seria o automóvel precursor. O carro não estava sobre ele, mais sim batido contra a arvore ao seu lado. Pensou que provavelmente o motorista, ao perceber que havia batido em alguém, desviou rapidamente para o lado, e encontrou a arvore, quem sabe uma irmã daquela na qual ele se apoiava?

Procurou o motorista, e mesmo com a escuridão, constatou que ainda estava dentro do carro, imóvel, talvez morto. A batida havia sido grave, o carro amassou-se completamente, a arvore entrou até o meio do carro, por sorte pelo lado do passageiro, que não devia existir. Era comum jovens superficiais passarem toda a noite do natal bebendo, em homenagem, talvez, à um trauma incompreensível e invisível. Possivelmente um destes resolveu dirigir em alta velocidade, pelo visto altíssima, e com caro esporte típico da juventude burguesa.

Vendo o estrago do carro na arvore, compreendia-se rapidamente porque ele havia desmaiado, e que, provavelmente, o motorista irresponsável deveria estar morto, pois um pescoço raramente agüenta tamanho choque. Gabriel tinha perfeita consciência do que estava acontecendo, e aos poucos passava a sentir dores insistentes, por todo o corpo, que misteriosamente não pereceu sob tamanho impacto.

Resolveu analisar melhor a si mesmo, e percebeu que estava muito ferido, com sangue escorrendo por toda parte, provavelmente com pernas e costelas quebradas. O impacto foi muito forte, e seu corpo não resistiu. Olhou para si e percebeu: seu peito direito foi varado, sangue escorria, e o objeto continuava ali, inerte, preso em seu corpo estendido no chão.

Ele via um cilindro grosso e brilhante enterrado em seu peito, embebendo-se em sangue vermelho. Não sabia que parte de um automóvel era aquilo, mas percebeu que era grave, e não se moveu. Não sabia como havia deixado de perceber aquela coisa antes, seu corpo obviamente esqueceu de senti-la, embora, pensando melhor, talvez fosse realmente adequando, dada a situação.
Gabriel não ficou, porem, abalado. Ele era um racionalista, por isso não teve medo, abandou logo o temor e nervosismo, pois tinha plena consciência que isso não adiantaria de nada. O medo é apenas um mecanismo de auto-defesa, capaz, se corretamente utilizado, gerar impulso para as pessoas fazerem coisas de que duvidariam serem capazes, como nocautear um assaltante armado.

Ele não precisava de medo, não precisava se proteger, essa hora tinha passado, e ele agora já havia sido derrotado. Ele sabia que precisava se controlar e manter a tranqüilidade, pois só isso prolongaria seu tênue fio de vida. Assim, buscava imagens tranqüilas, para acalmar seu pulso, diminuir a quantidade de sangue correndo, diminuir a velocidade, para evitar uma rápida perda de sangue, apenas por um nervosismo tolo.

Respirou fundo para tentar relaxar. Logo interrompeu o ato; senti dor, uma dor aguda e negra, mas não completa, como a sensação da tensão de uma corda esticada, ameaçando romper-se. Sentiu também sangue vindo-lhe a boca, escorrendo fluentemente, como um rio caudaloso e infreável. Não conseguia controlar aquilo, cada vez mais sangue saia, e ao tentar parar aquilo, soluçava debilmente. Ao sentir tanto sangue vindo à boca, e a sensação de sufocamento, sabia que o pulmão havia sido perfurado. Não duraria muito tempo naquela situação.

A morte mostrava-se por inteira, como a menininha brincando de esconde-esconde que finalmente se revela, para correr e ganhar a partida. Gabriel não tinha ilusões sobre seu destino, havia estudado um pouco de medicina no colegial e sabia que seu caso era fatal.

Estava triste por morrer tão cedo, não sabia mais o quê pensar, nem como pensar; a lógica havia falecido primeira. Bem que imaginava uma vida mais feliz, um final mais feliz, com uma familia, amigos queridos, lembranças preciosas. Pensava que poderia advertir seu filho em como tomar cuidado com os carros na rua, e nunca ficar a beira da estrada; seria muito prazeroso ensinar, depois de sobreviver a uma experiência assim, como agir a seu filho, seu doce filho inexistente e impossível.

Tentava se consolar, não ter medo, mas era muito difícil. Pensou, então em Epicuro, filosofo grego, e repetiu-lhe fervorosamente as palavras : “vivos não devemos temer a morte, pois ela em nós não estará, e temer-lhe seria um desperdício de vida, como morrer aos poucos. E quando mortos, não temeremos também a morte, pois por nós ela já haverá passado.” Repetiu-lhe as palavras até o fôlego finalmente, naturalmente, acabar fatalmente.

Dois dias depois, uma matéria foi à televisão sobre um trágico acidente numa noite de natal, onde o motorista e pedestre morreram tragicamente: o motorista com o pescoço quebrado, e o pedestre foi perfurado por uma haste de metal que se desprendeu do carro na colisão com uma arvore, mas seu motivo real de morte foi uma afogamento, provocado pela entrada do próprio sangue dentro dos pulmões.
O público reagiu com indiferença, acostumados com a banalização da violência. Ficaram, porem, felizes em saber que em sua cidade, na noite de natal, apenas duas mortes foram contabilizadas, e num acidente infeliz, em vez de fruto de um crime cruel. Não perceberam, porem, que comemoraram um “copo meio cheio”, sem pensar que talvez ele estivesse “meio vazio”.

Como presente por se interessar tanto por uma vida humana, a ponto de chegar até o final de uma leitura humanista, lhe presentearei com o derradeiro final dessa historia, que na verdade se dá no momento em que o fôlego se acaba:

Era a hora, e ele percebeu isso, mas estava calmo, pois pensava num pensamento simples, quase infantil, numa memória de infância, de um personagem querido, chamado Peter Pan, que no momento de morte falou as celebres palavras: “morrer será minha ultima grande aventura.”

“É verdade,” concordou Gabriel, “eis minha ultima aventura.” No momento de que seus olhos escureciam, como se adormecessem, pensou ver muitas folhas velhas e amarelas caírem das arvores...


“Mas é outono? O outono está tão longe... estamos quase tão próximos da primavera...”




“Ah. Entendi, eu sou uma dessas folhas...”

1 Comments:

Blogger ** Carla Fernandes ** said...

Da onde tiraste esse texto?? de algum livro ?? ou de seu próprio pensamento??

4:18 PM  

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